quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Conto do Sertão Chovido


O período de chuvas sempre foi para mim sinônimo de nostalgia.

Lembro da infância na fazenda, onde brincava nas pequenas grotas fazendo barragens com pedras, varetas e lama. Construía verdadeiras represas com direito a sangradouro, ilhas e barquinhos de papel. Vez por outra iniciava um arrombamento e ficava maravilhado com a força que aquela pequena quantidade de água tinha para rasgar a terra em poucos segundos. Uma vontade imensa de ganhar a liberdade, fugir das alturas e buscar lugares mais baixos....sair da solidão e se unir em grandes quantidades....grota maior, riacho, rio, mar....

Na minha segunda infância, já querendo pintar bigode, comecei a descobrir os encantos do tempo. Tentar prever a chuva era algo que me fascinava (até mais do que hoje). Olhava pro horizonte e ficava a imaginar qual nuvem iria trazer nossa tão esperada água. Muitas vezes errei.

Observava a natureza e tentava imaginar o quê que aqueles sinais queriam dizer. As formigas, couro de cobra, canto da Sericóia (hoje em dia já extinta por essas bandas), direção dos ventos, coaxar dos sapos...tudo significava algo, o difícil era fazer a tradução.

Tem uma história que ouvi de meu pai que retrata muito bem esse sentimento de passividade que temos diante das forças da natureza.

Se passava em uma fazenda, nos anos 90. Um local distante da cidade e castigado pela seca. Era março e, até então, nada de chuva. No final de uma tarde árida, dois senhores batem à porta de uma casa, pedindo abrigo para passar a noite. Eram funcionários da FUNCEME que estavam na região investigando os castigos da seca e tentando desvendar as previsões de tempo.

Como todo sertanejo de raiz, o dono da casa os acolheu com carinho e atenção, tendo, após um jantar simples, porém farto pros padrões do sertão, aconselhado os dois a armarem suas redes dentro de casa.

- Não, obrigado. Vamos dormir no alpendre mesmo. É mais ventilado.

- Olhe, doutor, eu se fosse o senhor dormiria aqui dentro. Insistiu o fazendeiro.

- Mas qual a razão da insistência? Perguntou, intrigado, um dos senhores.

- É por conta de que vai chover. E quando chove forte molha tudo aqui no alpendre.

Os funcionários se olharam e, em respeito ao sertanejo, não comentaram nada, embora tivessem certeza de que aquilo tudo era absurdo. Todas as previsões eram de seca por mais um ano, e por ali não choveria nos próximos 10 meses.

- A gente fica por aqui mesmo. Fique tranquilo.

- Por nada. Tenham uma boa noite então.

Nem bem adentrou a madrugada o fazendeiro acordou com batidas na porta desesperadas. Eram os dois senhores completamente encharcados com a tempestade que caía. Ninguém falou nada. O fazendeiro arrumou mais duas redes aos cavalheiros e voltaram todos a dormir.

Nem bem amanheceu o dia e todos já estavam de pé, como é de praxe no sertão. Leite, café, queijo, ovo, bolacha e tapioca com nata. O café era reforçado pois era dia de brocar a terra. O inverno tinha chegado!!!

Comeram bem e pouco falaram sobre o incidente. Não era do feitio do sertanejo cantar vitória, principalmente quando nela todos ganhavam. Pegou sua enxada, foice, facão, um garrafão de água, uma banda de rapadura e se despediu dos hóspedes. Era hora de cair no mato pra preparar a terra pro plantio.

- Pois até mais ver, senhores! Façam uma boa viagem!

- Obrigado por tudo! Deus lhe abençoe.

Neste momento um dos senhores criou coragem e perguntou o que não podia deixar de ser explicado:

- Meu senhor, o senhor me desculpe, mas meu amigo e eu tempos mais de 20 anos de experiência em previsão do tempo. Fizemos graduação, especialização, conhecemos técnicas e formas de entender como funciona o processo das chuvas. O senhor poderia, por favor, explicar como sabia que ia chover ontem?

- Ora, meus senhores, mas é muito simples. É que eu tenho um jumento há muitos anos. Sempre foi um jumento bom e trabalhador, mas há uns 5 anos ele pegou uma bicheira e acabou perdendo uma das orelhas. Com isso, toda vez que chovia ele tinha que virar o pescoço pro outro lado, senão entrava água no ouvido dele. Mas tá com uns 2 anos que ele aprendeu que se ele estivesse debaixo do curral no momento da chuva, ele num precisava virar o pescoço, pois ele estaria protegido.

- Sim e o quê que isso tem a ver com a chuva? Questionou um dos funcionários.

- E dai que ontem quando a gente estava conversando eu vi quando o jumento passou correndo pra debaixo do curral.

Os senhores novamente se olharam. Nada disseram. Não havia o que dizer. Agradeceram e foram embora. O sertanejo foi preparar seu roçado. Aquele foi um ano bom para todos, com exceção do jumento que quase não saiu do curral.
Sempre lembro dessa história quando vejo uma chuva repentina, ou um céu azul em meio a trovoadas.

Creio eu que, na verdade, o que decide tudo isso é um misto de acaso e sorte....coisas de Deus...


Foto: Dr. Pedro Cavalcante (http://www.flickr.com/photos/pedro_neto/2204071648/in/set-72157603713398645)

4 comentários:

  1. Lindo conto! Onde conseguiu essa foto? Ela é do Pedro Cavalcante. Aí está o link para você fazer a referência: http://www.flickr.com/photos/pedro_neto/2204071648/in/set-72157603713398645

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  2. Oi Neiline! Tinha essa foto no meu computador há tempos! Sempre gosto de salvar essas obras primas! Obrigado pela contribuição!!! Parabenize o Dr. Pedro pela arte!!! Grande abraço!!!

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  3. Gostei bastante do conto. Sabedoria popular...

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  4. Muito bom ler suas palavras. Consegue nos fazer mergulhar na história... Não tive essa vivência sertaneja, mas aprendi com você que a chuva tem muito mais significados do que a gente possa imaginar. Deus permita que ela sempre traga o que o nosso povo tão sofrido espera.

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