terça-feira, 26 de junho de 2012

O velho mestre do sertão


Era um homem de poucos amigos. Tinha lá suas desavenças e alguns prometidos, mas, creio, nenhum inimigo. Um homem bom, mas as vezes incompreendido em suas convicções, talvez por ser daqueles que teimavam em defender seus pontos de vista e findava por cultivar poucas amizades.

Também era um homem trabalhador. Tinha na labuta diária mais que um prazer. Gostava do que fazia e era conhecido na região por ser dono de expertizes raras, quando não extintas, nas artes do curandeirismo e dos trabalhos finos.

Certamente seria um pajé respeitado, se vivesse numa tribo indígena do século XVI, mas quis o destino que ele vivesse no século XX, no sertão do nordeste, no norte do Ceará. 

Ele não chegava a ser visto com desdém por qualquer pessoa, pois, mesmo os que não gostavam dele, respeitavam seus conhecimentos adquiridos, sabe-se lá como. Chamavam-no de bruxo.

Se era conhecedor dos rituais ocultos ou poderes espirituais, não sei dizer, mas os amigos e colegas mais próximos tinham nele uma pessoa a quem sempre se podia pedir uma opinião. 

Chamavam-no de "O Mestre". Para os íntimos: Mestre Zé.

Conheci o Mestre Zé na minha infância. Era o caseiro da Casa Grande da Fazenda Pau Caído. Braço direito de meu pai e que estava sempre ao seu lado nos mais diversos momentos, nas situações mais variadas.

Consertar um cerca? Mestre Zé fazia um acabamento e dava dicas de alinhamento. Limpar o viveiro? Mestre Zé orientava a melhor forma para não machucar e maltratar os pássaros. Fazer um churrasco? Mestre Zé fazia os espetos, acendia o fogo e preparava a carne. Enquanto meu pai, meu avô e meus tios tomavam cerveja, Mestre Zé tomava sua pinga e seguia preparando o banquete.

Tinha um quartinho debaixo da caixa d'água onde guardava seus instrumentos. Eram muitos e a mim fascinavam. Tinha de tudo ali. Cordas, ervas, frascos de vidros, pregos, martelos, serrotes, espingardas... é o pouco que me lembro do local que vivia sempre trancado, tendo eu acesso apenas na presença de meu pai.

Lembro do dia em que saímos pra caçar rã. Era lua cheia e tinha chovido muito durante o dia inteiro. Éramos meu pai, Mestre Zé e eu. Já devia ter meus 8, 9 anos e me achava um adolescente por me deixarem seguir em tão ousada aventura: desbravar os "pântanos" nas beiras do açude e do riacho pra caçar. Cada um com um saco amarrado ao corpo, onde depositávamos as espécies ainda vivas, porém feridas mortalmente pela lança fabricada cuidadosamente pelo Mestre. A sensação de participar deste momento é algo que não esquecerei.

Quando viemos morar em Sobral, perdi um pouco o contato com o Mestre Zé. Ele continuou lá, com suas artes e seus trabalhos. Aposentou-se à duras penas e logo em seguida adoeceu. Lembro de ter ido lhe visitar na Santa Casa. Momento marcante pra um jovem moço. Encontrar aquele homem forte e destemido numa cama ligado a fios e cabos com fluídos e cheiros...

Quando recebeu alta, ainda tive alguns bons momentos com ele, já na Fazenda Raposa (agora nossa fazenda oficial, com o que sobrou do Espólio da Fazenda Pau Caído). Ia quase todas as semanas com meu pai e o Mestre fazia questão de nos visitar.

Certa vez ele chegou se queixando de uma frieira nos pés. Pediu álcool e saiu ateando fogo. Aguentou alguns segundos e depois apagou. Passou terra e deixou o pé estirado ao sol por alguns minutos. Coisas de homem. Coisas do sertão.

Lembro bem de uma manhã de sábado. Ele já estava bem debilitado pela doença, mas isso não impediu uma conversa gostosa que se estendeu pelo dia. Ele era um sábio sem estudo, desses que já não existem mais, ou pelo menos não se encontra...

Naquele dia ele me ensinou a fazer tranças com palha de carnaúba com até 16 pernas. Passou-me as noções de como confeccionar chapéus e me fez um presente que ainda hoje guardo: um instrumento de palha que, uma vez que você coloque o dedo dentro, quanto mais você puxar, mais apertado ficará. Me ensinou o segredo pra soltar o dedo e prometeu que em outra ocasião me ensinaria fazê-lo.

Ele faleceu na semana seguinte aos 26 de outubro de 1994. Lembro de seu velório e seu enterro como sendo algo muito novo pra mim. Tinha 13 anos recém completados e senti como se tivesse perdido um amigo. Na verdade tinha. Lembro de meu pai chorando muito e da multidão que se aglomerou pra dar o último adeus ao nobre Mestre.

O tempo passou, eu cresci, virei professor e vez por outra me lembro do velho Mestre Zé. Quando vejo um velho sertanejo com o corpo sofrido, mas um "ar" de sabedoria no olhar. Quando vejo um homem que aparentemente não tem nada a oferecer, mas que detém conhecimentos raros. Quando vejo a sabedoria brotando de onde menos se espera....  

Essa é pra você! Velho amigo, velho mestre...

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