terça-feira, 20 de novembro de 2012

Vivendo de Esperança

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O olhar perdido já era costumeiro. Luiz acordava, tomava um caneco d'água, lavava o rosto, saia pro alpendre e ficava com o olhar distante no nascente.

A esperança em dias melhores era mais forte que a tentação de migrar para a cidade. Muitos já foram, com a promessa de voltar quando tudo melhorasse.

Luiz ficara. Suas raízes na terra quente e seca eram mais fortes que a fome e a sede. Sua fé no inverno vindouro e próximo falava mais alto que o medo. Sua esperança de que sua vida voltasse a ser como antes era maior que tudo.

Já estava no final do mês de novembro e, aos poucos, começava a fazer suas experiências. Eram muitas e nem todas tinham sua lógica, mas pro coração do sertanejo, tudo era sinônimo de esperança.

Torcia para que não chovesse naquele mês, afinal, chuva em novembro era sinal de inverno desmantelado. Sempre foi assim, inclusive nos dois anos anteriores. Choveu bastante em novembro e deu no que deu: seca. Por isso, naquele momento o olhar perdido pedia mais por sol do que por chuva. Queria um inverno bom e com chuva farta, mas não agora.

Em dezembro, logo no dia 13, faria a experiência de Santa Luzia. Colocaria, na noite do dia anterior, uma pedra sobre o peitoril, com sete riscos de tamanho idênticos e, entre esses riscos, uma pedra de sal. Cada pedra representava um mês do ano seguinte. No outro dia, bastava observar o sal e ver quais estavam umedecidos. Era a chuva dos meses de janeiro a junho. A experiência do ano passado não tinha falhado. Desde logo soube do sofrimento que enfrentaria. Não tinha uma pedra sequer que tivesse ficado mais molhadinha.

Seu compadre e vizinho também tinha feito a experiência no ano anterior e tinha tido um resultado curioso. Segundo ele, o inverno ia ser dos melhores, pois as pedras amanheceram derretidas em água. Ninguém entendeu. Vários conhecidos foram ver o feito, sem acreditar na possibilidade. Muitos queriam crer que todos estavam errados, menos ele. Logo, porém, foi descoberto o erro. O velho sertanejo tinha colocado a pedra com o sal em cima de uma cisterna. Lugar mais úmido não havia num raio de quilômetros. Uma pena.

De fato, aquela experiência não falhava. Luiz fazia essas e outras sempre que podia. Gostava de observar a natureza e, observando, meio que planejava sua vida. Era só terminar o mês de novembro sem chuva que iria começar a roçar. Ia usar o mesmo roçado dos dois anos anteriores. Estava limpo ainda, bastava uma sacodida na terra e a retirada de uns poucos galhos secos que insistiram em crescer em meio à seca.

Nos anos anteriores limpara, mas não plantara. Tinha economizado, aos menos, aqueles grãos. Tinha muita fé na chuva, mas sabia que se as experiências dessem errado, nem adiantava teimar. Nunca, em quase quarenta anos de vida adulta, tinha perdido uma previsão. Se a natureza dizia que ia ser seca, nem plantava. Se mostrava que ia ter chuva, roçava, plantava e colhia farto.

Só teve um ano em que sua previsão não foi das mais acertadas. Naquele ano de 97 o inverno começara bom. Logo em dezembro vieram as primeiras trovoadas. Muitos se apressaram. Ele esperou por janeiro. Plantou e viu seu roçado crescer vistoso. O inverno parecia perfeito, mas no dia de São José, veio o que ninguém esperava. Chuva desde a madrugada. Era um péssimo sinal.

O dia de São José ocorre no dia 19 de março, 48 horas antes do equinócio e tinha pra Luiz um significado todo especial. Se até aquela data o inverno não se manifestasse, considerava perdidas todas as esperanças. Mas esse dia também tinha suas mensagens. Ele tinha que amanhecer com o céu limpo, com sol. Chuva somente a tarde. Se amanhecesse chovendo, era sinal de inverno findando. Era o que se chamava de seca verde. Chovia, mas não o suficiente para encher os açudes.

Naquele ano de 97 o dia de São José amanheceu inundado por chuva em todo o sertão. Era o prenúncio de um desastre. E ele não tardou a acontecer. Luiz perdeu toda a lavoura. O grãos que estavam por vir não vingaram. teve que arrendar sua plantação pra um vizinho que tinha um gado farto. O que ia lhe tirar a fome, serviu pra alimentar o gado alheio.

Jamais esquecera daquele ano. Enquanto olhava o horizonte, torcendo pra não vir chuva em novembro, Luiz lembrava-se com tristeza daquele ano de 97, ano em que perdera quase tudo. Perdera o plantio, perdera tempo, trabalho, mas também perdera sua Mocinha.

Já se passavam 15 anos, mas não tinha um só dia que ele não lembrasse de seu cheiro. Sua parceira de toda a vida tinha lhe deixado sozinho, sem filhos, sem ninguém.

Casaram muito novos. Luiz, filho mais velho de um antigo latifundiário da região, tratou logo de ganhar um pedacinho de terra. Mocinha, ou Dona Mocinha como passou a ser chamada, era a moça mais linda da região. Filha de uma cabocla com um imigrante holandês, que andou por aquelas bandas nos primórdios dos anos 50 em busca de aventuras. Dona Mocinha herdara a beleza do pai e a sensualidade da mãe. Tinha lindos cabelos castanhos claros, pele morena e olhos da cor do inverno, como gostava de dizer Luiz. Verdes como gosta o sertanejo.

Casaram e foram morar juntos. Nunca tiveram filhos. Não se sabe se por problemas de Luiz ou de Dona Mocinha, a verdade é que nunca conseguiram, embora sempre desejassem. Principalmente Mocinha que sempre quisera uma família grande e farta. Daquelas que enche uma casa. Sonhava com isso desde criança, pois nunca teve irmãos e viveu por muitos anos sozinha com sua mãe.

Mas quis o destino que os dois morassem sós, por quase três décadas. Foram anos de muita luta, trabalho, mas também de muito amor, cumplicidade, amizade, esperança, até que um dia Deus resolveu levar Mocinha.

Luiz olhava o horizonte e sentia o cheiro de café quente que ela fazia toda manhã. Ele acordava antes do amanhecer pra juntar o gado e tirar o leite. Quando voltava, encontrava aquele café quentinho, com cheiro de aconchego. Encostava no peitoril e tomava o café olhando o horizonte enquanto Mocinha lhe olhava, apaixonada.

Estava exatamente ali, no peitoril, olhando o horizonte. Só que sem o café, sem sua Mocinha.

Não se sabe ao certo o que a levou. O que se sabe é que foi rápido. Muito rápido. Um dia ela sentiu dores na cabeça, levaram num médico da cidade que lhe receitou uns exames. Em vão. Morrera a caminho de casa, subitamente.

Desde então Luiz tem vivido só. Nunca pensou em mais ninguém. Nem quer. O pensamento de que sua Mocinha ainda vive e convive com ele é algo que trás no pensamento, quase como um delírio. Imagina ela ao seu lado na cama, sentada à mesa, durante o almoço. Inclusive ali, no peitoril, olhando o horizonte. Imagina ela ao seu lado, lhe olhando, admirando seu olhar perdido e esperançoso. Esperançoso por chuva, rios e açudes cheios, mesa farta, crianças correndo pela casa, cantigas de ninar...filhos que nunca tiveram mas que também vivem em seus pensamentos...

E assim Luiz vai vivendo de esperança. Esperança de que tudo reviva pra ele. Esperança em ver sua Mocinha de novo. De poder segurar sua mão enquanto observa o tempo subindo, as nuvens formando e a chuva chegando. Aquele cheiro de terra molhada, misturado ao cheiro de seus cabelos cor de mel. O banho de chuva em seus braços. Olha pro horizonte e espera, dia após dia, sozinho, sem perder a fé...

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