Tim Maia era um gênio complexo e contraditório. “Preto, gordo e
cafajeste”, como ele se definia. Mas o que estão fazendo com sua
biografia é caso de polícia.
A Globo transformou um filme lançado no final de 2014 num docudrama —
mistura de ficção e documentário — em dois capítulos. Desfigurou tudo.
Incluiu depoimentos de artistas, cortou cenas, alterou a ordem de
acontecimentos.
Aproveitou para limpar a barra de Roberto Carlos. No longa, que é
inspirado no livro de Nelson Motta, Tim é esnobado por Roberto até
conseguir uma reunião por insistência da mulher de RC, Nice, em que
Roberto acaba topando gravar “Não Vou Ficar”.
Os dois eram amigos da Tijuca no fim dos anos 50 e fizeram parte de
um grupo vocal chamado Sputniks. Quando a Jovem Guarda estourou, Tim
havia voltado dos EUA quebrado. Procurou Roberto em busca de uma chance
no programa. Foram meses de batalha, eventualmente humilhantes.
Nelson narra algumas dessas histórias no livro. Na biografia
censurada de RC, Paulo César de Araújo ainda lembra uma ocasião em que
Roberto, na saída do Teatro Record, manda seu empresário dar dinheiro
para “Tião”. A grana foi amassada como uma bola e atirada em sua
direção. “Eu tive um acesso de choro na hora”, afirmou Tim.
Essa luta está no cinema. Na TV, porém, Roberto surge dizendo que
ajudou, sim, o cantor, e por vontade própria, não de Nice (nem a
pobre Nice, morte em 1990, pode se defender). Na pele do ator Babu
Santana, Tim Maia dá um depoimento: “Foi assim que Roberto Carlos lançou
o gordo mais querido do Brasil”. Você consegue imaginar essa frase
idiota na boca de Xuxa, mas não na de Tim Maia.
O diretor Mauro Lima criticou a adaptação no Instagram, sugerindo que
ninguém assistisse o “subproduto”. A emissora declara ter realizado uma
“recriação”. Nelson Motta, como era de se esperar, não falou nada e não
vai falar.
Há muitas pontas que não fecham. Como um diretor permite que seu
trabalho seja mutilado em nome de ficar mais “didático”? Se autorizou,
reclama do quê? Estava no pacote da Globofilmes uma versão televisiva
tabajara? Quem está ganhando com toda essa falsificação? Se fosse o
contrário — uma telebiografia de Roberto Carlos com um papel, digamos,
controvertido de Tim Maia, Tim seria chamado para dar um tapa?
Agora, não é apenas a relação com Roberto que era complicada. Tim
Maia vivia às turras com a Globo. Processou a emissora por direitos
autorais algumas vezes. Deu uma longa e divertidíssima entrevista ao Jô
sobre isso (no SBT, evidentemente).
Foram décadas de confusões legais. Não é nota de rodapé. Mesmo sendo
muito cuidadoso, Nelson Motta incluiu diversas passagens a esse respeito
em seu best seller. Em 1993, numa trégua jurídica, Tim deu um cano no
Faustão. “Na segunda-feira, a vice-presidência de operações da Rede
Globo enviou um memorando a todas as centrais vetando a participação de
Tim Maia em programas da emissora”, escreve.
Tim era louco, mas não era burro. Descontente com a capa de um disco,
quebrou a sala do diretor artístico da Philips, avisando a secretária
que deixou uma “lembrancinha”. Montou sua gravadora, a Seroma, para ter o
controle sobre sua obra.
Foi um dos primeiros artistas independentes do país, numa época em
que isso simplesmente não existia. As composições eram registradas na
editora, a distribuição dos discos terceirizada. Ganhou dinheiro —
gastou muito dinheiro.
Nunca escondeu suas excentricidades em entrevistas antológicas. Mas
não era um inocente útil, um trouxa, um junkie burro. Suas brigas com a
Globo são parte fundamental de sua vida. Morto, a emissora faz o que ele
nunca permitiu: apropriou-se de Tim Maia. Roberto Carlos é apenas mais
um detalhe feio nesse vale tudo.
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