O
olhar perdido já era costumeiro. Luiz acordava, tomava um caneco d'água, lavava o
rosto, saia pro alpendre e ficava com o olhar distante no nascente.
A
esperança em dias melhores era mais forte que a tentação de migrar para a
cidade. Muitos já foram, com a promessa de voltar quando tudo melhorasse.
Luiz
ficara. Suas raízes na terra quente e seca eram mais fortes que a fome e a
sede. Sua fé no inverno vindouro e próximo falava mais alto que o medo. Sua
esperança de que sua vida voltasse a ser como antes era maior que tudo.
Já
estava no final do mês de novembro e, aos poucos, começava a fazer suas
experiências. Eram muitas e nem todas tinham sua lógica, mas pro coração do
sertanejo, tudo era sinônimo de esperança.
Torcia
para que não chovesse naquele mês, afinal, chuva em novembro era sinal de
inverno desmantelado. Sempre foi assim, inclusive nos dois anos anteriores.
Choveu bastante em novembro e deu no que deu: seca. Por isso, naquele momento o
olhar perdido pedia mais por sol do que por chuva. Queria um inverno bom e com
chuva farta, mas não agora.
Em
dezembro, logo no dia 13, faria a experiência de Santa Luzia. Colocaria, na
noite do dia anterior, uma pedra sobre o peitoril, com sete riscos de tamanho
idênticos e, entre esses riscos, uma pedra de sal. Cada pedra representava um
mês do ano seguinte. No outro dia, bastava observar o sal e ver quais estavam
umedecidos. Era a chuva dos meses de janeiro a junho. A experiência do ano
passado não tinha falhado. Desde logo soube do sofrimento que enfrentaria. Não
tinha uma pedra sequer que tivesse ficado mais molhadinha.
Seu
compadre e vizinho também tinha feito a experiência no ano anterior e tinha
tido um resultado curioso. Segundo ele, o inverno ia ser dos melhores, pois as
pedras amanheceram derretidas em água. Ninguém entendeu. Vários conhecidos
foram ver o feito, sem acreditar na possibilidade. Muitos queriam crer que
todos estavam errados, menos ele. Logo, porém, foi descoberto o erro. O velho
sertanejo tinha colocado a pedra com o sal em cima de uma cisterna. Lugar mais
úmido não havia num raio de quilômetros. Uma pena.
De
fato, aquela experiência não falhava. Luiz fazia essas e outras sempre que
podia. Gostava de observar a natureza e, observando, meio que planejava sua
vida. Era só terminar o mês de novembro sem chuva que iria começar a roçar. Ia
usar o mesmo roçado dos dois anos anteriores. Estava limpo ainda, bastava uma
sacodida na terra e a retirada de uns poucos galhos secos que insistiram em
crescer em meio à seca.
Nos
anos anteriores limpara, mas não plantara. Tinha economizado, aos menos,
aqueles grãos. Tinha muita fé na chuva, mas sabia que se as experiências dessem
errado, nem adiantava teimar. Nunca, em quase quarenta anos de vida adulta,
tinha perdido uma previsão. Se a natureza dizia que ia ser seca, nem plantava.
Se mostrava que ia ter chuva, roçava, plantava e colhia farto.
Só
teve um ano em que sua previsão não foi das mais acertadas. Naquele ano de 97 o
inverno começara bom. Logo em dezembro vieram as primeiras trovoadas. Muitos se
apressaram. Ele esperou por janeiro. Plantou e viu seu roçado crescer vistoso.
O inverno parecia perfeito, mas no dia de São José, veio o que ninguém
esperava. Chuva desde a madrugada. Era um péssimo sinal.
O
dia de São José ocorre no dia 19 de março, 48 horas antes do equinócio e tinha
pra Luiz um significado todo especial. Se até aquela data o inverno não se
manifestasse, considerava perdidas todas as esperanças. Mas esse dia também tinha
suas mensagens. Ele tinha que amanhecer com o céu limpo, com sol. Chuva somente
a tarde. Se amanhecesse chovendo, era sinal de inverno findando. Era o que se
chamava de seca verde. Chovia, mas não o suficiente para encher os açudes.
Naquele
ano de 97 o dia de São José amanheceu inundado por chuva em todo o sertão. Era
o prenúncio de um desastre. E ele não tardou a acontecer. Luiz perdeu toda a
lavoura. O grãos que estavam por vir não vingaram. teve que arrendar sua
plantação pra um vizinho que tinha um gado farto. O que ia lhe tirar a fome,
serviu pra alimentar o gado alheio.
Jamais
esquecera daquele ano. Enquanto olhava o horizonte, torcendo pra não vir chuva
em novembro, Luiz lembrava-se com tristeza daquele ano de 97, ano em que perdera
quase tudo. Perdera o plantio, perdera tempo, trabalho, mas também perdera sua
Mocinha.
Já
se passavam 15 anos, mas não tinha um só dia que ele não lembrasse de seu
cheiro. Sua parceira de toda a vida tinha lhe deixado sozinho, sem filhos, sem
ninguém.
Casaram
muito novos. Luiz, filho mais velho de um antigo latifundiário da região,
tratou logo de ganhar um pedacinho de terra. Mocinha, ou Dona Mocinha como
passou a ser chamada, era a moça mais linda da região. Filha de uma cabocla com
um imigrante holandês, que andou por aquelas bandas nos primórdios dos anos 50
em busca de aventuras. Dona Mocinha herdara a beleza do pai e a sensualidade da
mãe. Tinha lindos cabelos castanhos claros, pele morena e olhos da cor do
inverno, como gostava de dizer Luiz. Verdes como gosta o sertanejo.
Casaram
e foram morar juntos. Nunca tiveram filhos. Não se sabe se por problemas de
Luiz ou de Dona Mocinha, a verdade é que nunca conseguiram, embora sempre
desejassem. Principalmente Mocinha que sempre quisera uma família grande e
farta. Daquelas que enche uma casa. Sonhava com isso desde criança, pois nunca
teve irmãos e viveu por muitos anos sozinha com sua mãe.
Mas
quis o destino que os dois morassem sós, por quase três décadas. Foram anos de
muita luta, trabalho, mas também de muito amor, cumplicidade, amizade,
esperança, até que um dia Deus resolveu levar Mocinha.
Luiz
olhava o horizonte e sentia o cheiro de café quente que ela fazia toda manhã.
Ele acordava antes do amanhecer pra juntar o gado e tirar o leite. Quando
voltava, encontrava aquele café quentinho, com cheiro de aconchego. Encostava
no peitoril e tomava o café olhando o horizonte enquanto Mocinha lhe olhava,
apaixonada.
Estava
exatamente ali, no peitoril, olhando o horizonte. Só que sem o café, sem sua Mocinha.
Não
se sabe ao certo o que a levou. O que se sabe é que foi rápido. Muito rápido.
Um dia ela sentiu dores na cabeça, levaram num médico da cidade que lhe
receitou uns exames. Em vão. Morrera a caminho de casa, subitamente.
Desde
então Luiz tem vivido só. Nunca pensou em mais ninguém. Nem quer. O pensamento
de que sua Mocinha ainda vive e convive com ele é algo que trás no pensamento,
quase como um delírio. Imagina ela ao seu lado na cama, sentada à mesa, durante
o almoço. Inclusive ali, no peitoril, olhando o horizonte. Imagina ela ao seu
lado, lhe olhando, admirando seu olhar perdido e esperançoso. Esperançoso por
chuva, rios e açudes cheios, mesa farta, crianças correndo pela casa, cantigas
de ninar...filhos que nunca tiveram mas que também vivem em seus pensamentos...
E
assim Luiz vai vivendo de esperança. Esperança de que tudo reviva pra ele.
Esperança em ver sua Mocinha de novo. De poder segurar sua mão enquanto observa
o tempo subindo, as nuvens formando e a chuva chegando. Aquele cheiro de terra
molhada, misturado ao cheiro de seus cabelos cor de mel. O banho de chuva em
seus braços. Olha pro horizonte e espera, dia após dia, sozinho, sem perder a
fé...
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