Bastava aquilo. Estava entregue em seus pensamentos e objetivos que só ele entendia. Chutava a bola, ela batia contra a parede e voltava. O desafio era dominar e conseguir, sem deixar cair, devolvê-la contra a parede. Às vezes conseguia. Muitas outras não.
Não era craque, mas tinha um talento pra poucos. Chutava forte e com precisão. Se atrapalhava um pouco nos dribles, mas corria muito. Em suma: era um bom camisa 9.
O menino estava ali há tempos, sozinho, mas em pensamento acompanhado por seus ídolos: Romário, Bebeto, Paulinho Maclarem e o maior de todos: Pelé. Sonhava em fazer gols como eles.
Mas naquele momento, o importante era dominar e chutar. E ele seguia tentando. Quando conseguia, fazia uma grito mudo, quase um assopro, imitando a torcida como se ela vibrasse freneticamente por um gol. Quando perdia, fazia um "huuuuu", como se a bola tivesse batido na trave...
Estava tão concentrado que não percebeu quando, do outro lado do alpendre, chegaram alguns moradores da fazenda. Seu pai estava os aguardando pra passar algumas ordens: cortar canarana, trocar o gado solteiro de cercado, reformar um cocho quebrado, etc. Era o "Doutor", dono da terra e que gerava emprego e renda pra um povo sofrido que não recebia ajuda de muita gente, ou de quase ninguém.
Eles ficaram observando o menino por um tempo e um dos moradores comentou com o patrão:
- Seu filho é bom de bola, Doutor.
- É. Ele leva jeito. Puxou o pai.
O patrão ficava envaidecido sempre que alguém elogiava o menino. Sabia de suas qualidades, e se sentia responsável pelas mesmas como se fossem próprias. Costumava dizer que criá-lo era sua responsabilidade, portanto, se saísse dali um bom homem, se daria por satisfeito. Ver aquele menino, já com quase 13 anos, se tornar um rapaz bom de bola, estudioso e namorador, o deixava muito feliz. Em ordem crescente de importância.
- O doutor podia deixar ele jogar no torneio das Aroeiras. Já é amanhã de tarde. - comentou um outro morador mais entusiasmado que tinha percebido o faro de gol do menino.
O pai virou pro menino e perguntou:
- Meu filho! O pessoal aqui tá lhe convidando pra jogar no torneio que vai ter nas Aroeiras amanhã. Você quer ir?
- Pra jogar por qual time, pai?
- Pelo Santos, claro!
Naquelas bandas do sertão a criatividade era guardada para os assuntos de sobrevivência (que eram muitos). Quando se tratava de nomes, valia o que havia de mais famoso. E a regra servia pra todo o tipo de coisa. De time de futebol a gente. A quantidade de Djon Leno, Maiquel Djequison, Stiven Spielberg, Valter Disney era uma coisa de louco! Até para os animais mais achegados sobrava um apelido mais importante: madona era a vaca premiada do curral. Dava mais de 8 litros de leite por dia. Rambo era o bode pai do chiqueiro. Zangado que só ele, encarava dezenas ao mesmo tempo e não sofria um arranhão sequer. Quando o assunto era time de futebol, a regra também valia. E se tinha um time que fez fama no mundo inteiro, esse era o Santos Futebol Clube. O time que parou guerra, correu o mundo mostrando um futebol arte e ainda fez nascer o Rei Pelé!
- Vou sim, pai! Posso ir no Nelson Piquet?
- Pode sim, meu filho, claro! Mas depois você banha ele no açude!
No dia seguinte, lá estava o garoto no ponto de bola. Chuteiras, meiões e caneleiras devidamente guardadas em uma pequena bolsa muito bem arrumada. Passara o dia anterior inteiro organizando tudo. Quando foi dormir, se deu conta que não tinha treinado o suficiente. Demorou pra pegar no sono. Acordou muito cedo e começou a treinar. Treinou tanto que cansou. Dormiu novamente e acordou com o pai no pé da rede.
- Num vai mais pro jogo não? O Nelson Piquet tá selado e o Alin tá te esperando pra ir contigo.
Alin era um amigo da fazenda. Irmão mais novo de um morador, era um pouco mais velho que o menino, mas com grande experiência. Uma espécie de protetor a quem o patrão confiava a guarda do seu filho. Na verdade Alin era seu segundo nome. O nome completo era Murramadi Alin da Silva Sousa.
O menino lavou o rosto, vestiu-se rápido, pulou o peitoril, montou no Piquet e já estava saindo quando lembrou-se de se despedir do pai. Olhou pra trás e viu o velho em pé, com sua bolsa na mão e uma cara de reprovação. Na afobação tinha se esquecido de pegar suas coisas.
- Olhe lá, hein!?!
Era o suficiente para o menino saber que tinha que tomar cuidado com tudo e com todos. Naquelas bandas e naquele tempo, pouca coisa era motivo pra discussão e briga. O menino, como filho do patrão, era respeitado. A preocupação do seu pai era pra que ele respeitasse os outros. Sabia que ninguém mexeria com o menino, mas temia que ele se zangasse com alguém. Era valente, paquerador e inexperiente, ou seja, um perigo.
Eles partiram. O menino no Nelson Piquet. O Alin numa égua mansa de nome pouco comum por aquelas bandas: Sarita. Muitos se perguntavam quem era essa dona. O patrão sempre desconversava. Dizia que era uma história longa...
Nelson Piquet era o cavalo prendado da fazenda. Mistura de Manga Larga
com "pé duro". Puxara mais o lado da raça, segundo o patrão. Era quase
puro. Esse nome, claro, se devia a velocidade que o animal alcançava e,
óbvio, ao seu temperamento nada amistoso.
O menino, no entanto, estava acostumado com o cavalo. Montava desde muito novo e eles tinham uma relação muito peculiar. Se entendiam no olhar. O menino era um dos poucos que Piquet permitia montar, fora o patrão e uns dois ou três empregados mais próximos da fazenda. Era um cavalo valente. Tal qual o menino.
A conversa fluiu enquanto os dois seguiam pras Aroeiras. Terra de mulher bonita e namoradeira. O menino vez por outra pedia pro pai pra ir pros terreiros alegres de lá. Era certo uma namorada nova. Talvez duas. Mas torneio era a primeira vez.
- Será que vai ter menina assistindo?
- Acho difícil! Normalmente só vai o macharal! - desiludiu Alin.
Ao chegarem lá o torneio já tinha começado. Eram quatro times que jogavam em sistema de semi-finais e final. Os jogos eram decididos por sorteio e jogados em dois tempos de 20 minutos. Em caso de empate. Pênaltis. O campeão levava o troféu e a bola.
Era mais do que suficiente pra chover marmanjo querendo jogar, afinal, por aquelas bandas era difícil uma diversão tão intensa. Fora as bodegas com sinuca e um ou outro terreiro alegre, os torneios de futebol eram a diversão que eles tinham! E principalmente pois juntavam várias meninas na beira do campo pra assistir. Eram várias! Menos interessadas no jogo que nos jogadores. O menino quase chorou de alegria quando viu a ruma de mulher ao redor do campo.
- Tu me disse que só ia ter homem, cara! Tá vendo a quantidade de mulher? Olha ali! Olha ali!
- Ou eu te dizia isso ou tu num ia me deixar em paz perguntando quem é que viria. - respondeu Alin satisfeito por ter enganado o amigo.
- Eita, cara!
O menino parecia pinto na merda. Não sabia por onde começar. Tratou de amarrar o cavalo numa árvore e foi logo chegando perto de um grupo de meninas. Conhecia algumas delas dos forrós. Puxou assunto. Quanto tá o jogo? Tão torcendo pra quem? Chegaram que horas? Vão embora com quem? A conversa corria solta quando uma das meninas perguntou curiosa:
- Tu num vai jogar não? O Santos já vai entrar em campo!
O menino tinha se esquecido do jogo! Olhou pro outro lado do campo e lá estavam todos com o uniforme semi novo que seu pai tinha dado há alguns meses! Iam jogar sem ele! Despediu-se das meninas meio que contrariado. Era uma escolha difícil, mas naquele momento ele queria jogar!
Deu a volta no campo correndo e chegou pro treinador, que também era o dono do time.
- Seu Clodoaldo, eu quero jogar!
- Você entra no segundo tempo. Vamos ver primeiro como começa o jogo pois o outro time é muito forte.
O outro time era o Real Madri. Formado por moradores da região da Miraíma. Eram conhecidos por serem raçudos e desleais. Clodoaldo, na verdade, estava preocupado com o menino. Era amigo de seu pai e sabia que uma entrada mais dura quebraria o moleque ao meio. Tratou de esperar.
De fato o jogo foi difícil. O primeiro tempo acabou em zero a zero e Clodoaldo chamou o menino no canto e explicou:
- Olhe, sei que você é bom de bola, mas a gente não pode perder esse torneio. Se a gente fizer um gol ai você entra, certo?
- Tudo bem seu Clodoaldo, pode deixar.
Pro menino, na verdade, as coisas não estavam tão mal. As meninas tinham vindo pra esse lado do campo pra puxar conversa. Naquele momento o banco de reservas estava mais interessante que o jogo.
O segundo tempo também acabou zero a zero. Pênaltis! Se do lado deles tinham jogadores raçudos, no time do Santos tinha um goleirão de primeira!
Marco Aurélio era filho de um professor de História de Santana do Acaraú que homenageara seus filhos com nomes de grandes figuras históricas. Eram sete! Júlio César, Aristóteles, Joana D`arc, e Marco Aurélio eram os que o menino conhecia. Deles, esse último era o mais alto e forte. Pegava bola como poucos! Vez por outra aparecia pela fazenda pra comprar queijo e brincava um pouco com o menino.
Não deu outra. Marco Aurélio pegou três pênaltis e o Santos foi pra final do torneio! Ia enfrentar o Atlético. Time formado pelo próprio pessoal das Aroeiras. Jogavam em casa e não iriam deixar passar esse torneio. Ia ser jogão!
Houve um intervalo de meia hora pros jogadores do Santos descansarem. O menino aproveitou pra arrastar uma das meninas pro canto. Era rápido e certeiro no gatilho. Beijos muitos. Naquela idade já pensava em outras coisas, mas não avançava sinal. Era muito novo para aquilo...
O jogo começou sem o menino, que voltou pro banco nos primeiros minutos do primeiro tempo. Estava tão contente que nem percebeu que o Santos estava perdendo. Só se deu conta quando Clodoaldo esbravejou ao seu lado, quase lhe derrubando de um susto.
- Porra, toca essa bola direito! Volta pra marcar, volta, volta!!!
O jogo estava tenso. E piorou mais quando o Atlético fez o segundo gol. Mais uma vez o ataque do Santos tinha perdido um gol feito. No rebote, o Atlético puxou um contra ataque mortal. 2 a 0.
No intervalo, a discussão foi das grandes! Vários jogadores falando e gritando uns com os outros. Eram muitos erros, o time estava perdendo muitos gols. O jogo já podia se considerar praticamente definido.
Clodoaldo resolveu então mudar meio time, alegando que estavam cansados. Era a chance do menino, que começou logo a se alongar. O técnico olhou pra ele e perguntou:
- Tu acha que dá pra jogar?
- Ora, mas é tudo que eu quero. Manda por a bola em mim que eu defino!
Diante disso, não tinha mais como evitar que o menino entrasse em campo. Era de longe o mais novo dos jogadores. A maioria já era adulto e tinha grande experiência de jogo. Ao verem aquele menino em campo, o time do Atlético achou que era piada.
- Ah bom! Tão dando o jogo por perdido! - esbravejou um dos jogadores.
Começou o segundo tempo e no primeiro lance de ataque do Santos a bola sobrou na frente do menino. Ele não contou pipoca. Chutou forte e viu a bola tomar o rumo certeiro do canto direito do banco de reservas do Atlético, que ficava atrás do gol, mas quase na lateral do campo. A gargalhada foi geral!
- Isso na serra vale ouro!!!
- Pra derrubar manga do pé é uma beleza!!!
O menino ficou furioso. Olhou em volta pra ver quem tinha dito aquilo. Em vão. Sua raiva era tanta que nem percebeu quando a lateral foi batida e a bola sobrou de novo na sua frente. Dessa vez nem chute, nem bola pra fora. Ele tinha esquecido do jogo. A bola passou entre suas pernas e ia sobrar pro zagueiro do Atlético, não fosse um lateral do Santos que apareceu no ataque e chutou certeiro no gol!
Com os gritos da torcida o menino acordou pro jogo. Ficou meio sem jeito por ter se desligado, mas voltou a sorrir quando o lateral lhe abraçou dizendo:
- Poxa cara, que porta-luz de craque!
Sem perceber o menino tinha feito uma jogada de mestre! Olhou pra Clodoaldo e viu o técnico aplaudir de pé a jogada! Olhou pras meninas e estavam todas pulando e vibrando de alegria. Ele era o craque do jogo!
A partida seguiu sem muitos lances perigosos. Como estava 2 a 1, o time do Atlético começou a praticar o que se chama de anti-jogo. Bola pro mato todo o tempo. Depois da jogada que fez, a marcação em cima do menino ficou mais forte. Poucas vezes conseguiu pegar na bola e, quando pegava, tinha que ser rápido se não já chegava um brutamontes pra lhe cutucar o tornozelo. Estava com raiva de novo. Prometeu a si mesmo que na próxima entrada ia deixar o cotovelo. E assim o fez. Uma cotovelada certeira que abriu o supercílio do volante atleticano. O juiz parou o jogo e deu amarelo pro menino que era protegido pelos seus colegas enquanto os jogadores do Atlético vinham tirar satisfação. O menino gritava:
- Ele que pediu. Aqui quem chegar leva!
De fora do campo, Alin estava quase tendo uma embolia. Não sabia se entrava em campo pra segurar o menino ou se fugia dali pra fingir que não estava vendo aquilo. Resolveu entrar, afinal, era seu amigo. Segurou o menino e disse:
- Tu tá ficando doido, cara! Se teu pai sabe disso ele te mata!
O menino lembrou do pai e do quanto ele zelava pela amizade daquela gente do sertão. Lembrou que todos ali eram pessoas de bem, trabalhadoras, honestas e que estavam todos lá pra se divertir. Sentiu-se mal com a confusão que provocara. Olhou pros jogadores do Atlético e pediu desculpas.
- Foi mal ai, pessoal. Fiquei meio sem cabeça. Me desculpem, tá bom? Vamos se divertir no jogo que é melhor.
Ouviu alguns palavrões, mas aos poucos os ânimos foram se acalmando. Não fosse ele o filho do patrão, iria levar uns belos cocorotes naquele fim de tarde, mas a realidade era aquela e todos respeitaram o menino por conta do seu pai. Enfaixaram o rosto do volante com gase e algodão e o sangramento parou. Estavam prontos de novo!
Finalmente o jogo recomeçou. Restavam menos de 5 minutos para o final e o Santos tinha que, pelo menos, empatar a partida. O Atlético, ao contrário do que vinha fazendo antes, resolveu jogar bola, queria ampliar a vantagem, era uma forma de se vingar do menino.
Numa jogada maestral, o lateral direito do Atlético invadiu a área driblando três do time do Santos, passou pelo goleiro e chutou para o gol livre. A bola correu cautelosamente até tocar a trave e voltar para o zagueiro do Santos que deu um chutão pro ataque.
A torcida ainda se lamentava quando o menino matou a bola chutada com uma categoria impressionante, correndo livre em direção ao goleiro que aguardava na entrada da área com atenção. A torcida gritava eufórica! Seria o gol de empate! O menino fez que ia pra direita, passou o pé por cima da bola e puxou pra esquerda. O goleiro caiu sentado. O menino parou a bola em cima da linha, virou de costas pro gol e fez de calcanhar! Gol de placa no campo das Aroeiras! Era o gol de empate do Santos que agora tinha um novo craque e herói! Os jogadores correram eufóricos pra abraçar aquele garoto invocado.
Agora faltavam menos de 2 minutos de jogo. Era só segurar o resultado. O empate estava de bom tamanho. Nos pênaltis o Santos tinha o goleirão Marco Aurélio. Era vitória certa. Numa última tentativa, o time do Atlético subiu inteiro pro ataque, a bola foi cruzada na área. Cabeças voavam alto tentando alcançá-la. Em vão. Ninguém conseguiu cabecear e numa dessas ironias do destino aquela bola acabou passando por todos e morrendo dentro do gol do Santos.
A histeria foi geral! O Atlético conseguira o gol da vitória e do título, pois o juiz tratou logo de encerrar a partida imaginando alguma confusão, afinal, era o time da casa que estava vencendo.
Os torcedores e o time do Santos saíram aplaudidos. O menino, mesmo depois das confusões, foi saudado e parabenizado por todos, inclusive pelos adversários. Estava feliz. Aquilo lhe surpreendia, pois era conhecido por não se comportar bem em momentos de derrota. Não sabia perder, ao menos até então.
Ficaram por ali por mais algum tempo. O menino terminando o chamego que começara antes do jogo. Agora mais quente e aconchegante que antes, afinal, ele era um craque e aquilo atraía muito mais as meninas.
Já era noite quando Alin lhe chamou para voltarem pra casa. Se despediram de todos e partiram em seus cavalos. O amigo começou a conversa:
- Rapaz, tu jogou bem demais! Pena que perderam né? Tu deve ter ficado com ódio!
- Pior que não, cara! Mesmo na derrota eu saí vitorioso, pois dei o melhor de mim e sei que fiz o que pude. Na verdade, nessa vida, o que importa é a gente fazer a coisa certa. A vitória nem sempre virá, mas se a gente fizer o que se deve, com certeza perderemos de cabeça erguida.
Alin ficou pensativo. Nunca tinha ouvido o amigo falar tão correto e tão bonito. De alguma forma, não sabe como, aquele jogo tinha servido pra dar uma grande lição ao menino.
E dizem que, a partir de então, o menino virou moço...
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