Apesar do lançamento atrapalhado, o programa Mais Médicos
tem se consolidado como uma hábil jogada do governo federal. As
entidades que representam a categoria médica foram alvo fácil pela
miopia política causada por lutas trabalhistas.
Em pouco tempo e com a ajuda de atos irracionais como o chamado à
omissão de socorro do agora contrito presidente do Conselho Regional de
Medicina de Minas Gerais ou o indignante protesto contra os colegas
cubanos dos médicos de Fortaleza, os médicos conseguiram se isolar da
maioria da população e servir de combustível para aquecer a aprovação do
governo nas pesquisas de opinião. Mas esse ambiente de polarização
deixa de lado uma pergunta fundamental: que tipo de médico que o Brasil
precisa?
A visão do estudante de medicina brasileiro é frequentemente
resultado de um sistema que tem coerência interna na forma de enxergar
seu processo de formação:
- a seleção é feita através de provas ultracompetitivas que demandam esforços adicionais no estudante;
- a carga horária é maior que a de seus colegas
de outras faculdades, atende pacientes do Sistema Único de Saúde desde o
terceiro ano e, se estiver em uma universidade pública,
corresponde à justa retribuição pela pesada carga tributária paga no
passado por seus pais.
Nessa ordem de ideias, parece absolutamente justo que a sociedade
valorize social e economicamente esse imenso e longo esforço feito por
esse médico quando formado.
Mas a coerência interna dessa visão não resiste à análise crítica, externa à categoria:
- os exames de admissão são realizados com perguntas sobre
conteúdos que não fazem parte do ensino médio-padrão. Isso serve para
excluir boa parte da população - quem duvidar, veja uma prova da FUVEST;
- os estudantes deveriam mostrar gratidão com os
pacientes do SUS que realmente são compelidos a colaborar para sua
formação como médicos – para um paciente do hospital universitário, se
recusar a ser examinado por estudantes não é um a opção;
- o maior tempo que ocupam os estudantes de
medicina nos seus estudos não significa que os esforços de estudantes de
outros cursos sejam menores – a carreira de medicina requer uma carga
horária extensa por necessitar de treinamentos técnicos nos hospitais.
No entanto, outras carreiras exigem pesadas cargas acadêmicas e de
criação que podem ser executadas em ambientes fora da universidade;
- não há sistemas de avaliação padronizados que
demonstrem o aproveitamento desses estudos – afinal para o paciente o
que importa é o resultado da formação e não a dificuldade do vestibular;
- os impostos pagos pelos pais não são poupança
para pagar os futuros estudos dos filhos na universidade pública – se os
pagaram é porque gabolsnharam mais renda que seus concidadãos. Antes,
os estudantes de medicina de universidades públicas deveriam se
considerar bolsistas subsidiados por muitos outros cidadãos que pagam
impostos indiretos quando compram os itens de subsistência mais básicos –
para saber o valor da bolsa, podem perguntar o valor de uma faculdade
particular;
Tomara que algum dia essas bolsas de estudo de medicina de
universidades cheguem às camadas mais pobres e que possamos afirmar com
orgulho que nossas médicas parecem com suas mães empregadas domésticas e
nossos médicos são a cara de seus pais pedreiros.
Cabe ainda assinalar que os que estudam em faculdade particular pagam
pela infraestrutura docente, mas o custo para instituições de saúde e a
colaboração dos pacientes não é necessariamente refletido nos vultosos
boletos de matrícula.
O ex-ministro da saúde Adib Jatene forneceu a chave do problema há
algumas semanas: as escolas médicas do Brasil estão focadas na formação
de candidatos a especialistas e não em clínicos gerais ou “especialistas
em gente”, segundo suas palavras.
Assim, um estudante de medicina no Brasil que desde o vestibular
anseia virar ortopedista, quando faz estágio por obstetrícia sabe que o
conhecimento sobre como fazer o atendimento pré-natal adequado só será
necessário para ele ser aprovado no estágio e depois no exame de
ingresso na residência de ortopedia. Em outras palavras, nunca fará uso
prático desse conhecimento.
Portanto, focará precocemente seus esforços naquilo que será seu
futuro, participará de grupos de estudo especiais como a Liga da
Ortopedia, e se não for aprovado no exame de residência na primeira
oportunidade, logo após formado, seguirá tentando, no entanto, a fazer
um cursinho (sim, existem cursinhos para exame de residência) e dar
alguns plantões para sobreviver (de preferência numa clínica
ortopédica).
E onde leram atendimento pré-natal, podem ler também tratamento de
tuberculose, esquemas de imunização, educação para prevenção de
complicações da diabetes e outras atividades de atenção básica que se
esperam de clínicos gerais.
O sistema está desenhado para que os grandes esforços que, sem
dúvida, foram feitos pelos estudantes para se formar como médicos sejam
focados em realizar uma especialização e não em ser bons clínicos
gerais. Assim, nosso ortopedista formado após inúmeras noites de plantão
termina encaminhando seu paciente ao colega dermatologista para tratar
uma micose superficial da pele que não representaria desafio algum para
qualquer clínico geral.
Um dos modelos aplicados em quase toda América Latina para aliviar a
falta de médicos no interior dos países, o serviço social obrigatório,
traz como feliz efeito colateral uma mudança de atitude no estudante de
medicina.
O mesmo estudante que anseia em ser ortopedista no México ou Equador
sabe, desde que é aprovado no vestibular, que deverá retribuir à
sociedade pelo apoio dado por pacientes e instituições para sua
formação, trabalhando em cidades do interior, em locais alocados pelo
governo.
Nesse local, ele deverá atender a todos os pacientes que o
procurarem, seja por malária ou por crise de asma. Dessa forma nosso
futuro ortopedista mexicano ou equatoriano prestará grande atenção a
todas suas aulas e práticas já que a expectativa de aplicação desse
conhecimento é real, mesmo que depois ele seja aprovado para a
especialidade de ortopedia, sabe que sua verdadeira prova como clínico
geral está com os pacientes que ele deverá atender durante o período de
serviço social obrigatório. E quando se tornar ortopedista, ainda
continuará a ser um clínico geral que poderá solucionar problemas
simples de seus pacientes sem precisar encaminhar a outro especialista.
Mas é possível ir além nessa discussão sobre a formação médica no
contexto de nossa sociedade atual. Com que frequência os médicos
informam a seus pacientes sobre o significado de seus diagnósticos, as
alternativas terapêuticas e os convidam para fazer uma escolha conjunta
sobre o manejo de sua doença antes de preencher o receituário?
O reconhecimento do indivíduo, independentemente de seu nível
socioeconômico, como sujeito autônomo de direitos deve entrar também na
porta de hospitais e ambulatórios. Esse é o verdadeiro significado dos
esforços de humanização que, de forma valorosa, já fazem muitíssimos
pioneiros, inclusive no SUS, mas que ainda não conseguem permear por
completo as rígidas estruturas de muitas faculdades de medicina e
hospitais universitários que continuam a focar na técnica e deixam a
ética e a humanização como aulas teóricas, longe dos leitos e dos
consultórios.
A discussão sobre que tipo de médico que o Brasil precisa ainda deve
ser construída e essa é a oportunidade que as entidades médicas têm para
virar o jogo e retomar sua interlocução com a sociedade. Alguns pontos
dessa discussão foram esboçados anteriormente: o médico brasileiro
deveria ser um excelente clínico geral antes de virar especialista. Deve
enxergar o serviço social no interior como um incentivo para sua
formação e valorizar seus pacientes como sujeitos autônomos de direitos.
A partir dessa discussão sobre o que se espera concretamente de um
clínico geral, as entidades médicas poderão rever queixas até o momento
nebulosas como o que significa em termos detalhados uma condição
aceitável de trabalho para atendimento básico, dadas as diversidades
geográficas e sociais do Brasil, e como avaliar se a formação de médicos
brasileiros ou de outras nacionalidades coincide com esse perfil
desejado de clínico geral.
Dessa forma o nível da discussão vai transcender os interesses
eleitorais do governo e trabalhistas dos médicos para dar vez à
construção de uma alternativa sustentável de atenção básica que
contribua na materialização do direito constitucional à saúde para todos
os brasileiros.
Ricardo Palacios é médico, formado no exterior
com o diploma devidamente revalidado no Brasil, brasileiro naturalizado.
Foi consultor temporário para projetos de pesquisa da Organização
Mundial da Saúde e agora estuda Ciências Sociais na Universidade de São
Paulo. As opiniões expressadas neste artigo não representam a posição de
instituição alguma.
Fonte: www.cartacapital.com.br
MINHA OPINIÃO
Dentre os inúmeros textos que já li sobre o tema este foi o que julguei mais sensato.
Conheço muitos médicos. Poucos são a favor deste programa. Os que são, curiosamente, trabalham na Saúde Pública. Conhecem de perto as necessidades e anseios dos verdadeiros beneficiados com este programa.
Dos inúmeros que já vi se manifestando contra, a maioria nunca trabalhou nem pretende trabalhar na Estratégia Saúde da Família. Por quê? Pois não se importam com isso. Preferem ficar ricos. Se eu os critico? De forma alguma! Estudaram muito e têm mesmo é que irem atrás de seus sonhos! Se o sonho é enriquecer, que o façam!
Agora por favor não venham, de uma hora pra outra, alegar que se importam com a outra ponta da pirâmide! Dizer que os médicos estrangeiros vão tratar do nosso povo de forma ruim quando você, médico, brasileiro, simplesmente optou por não fazer isso é no mínimo contradição, pra não dizer hipocrisia!
Eles não fizeram o REVALIDA? Nem você! Eles não passariam? E quem garante que você passaria?!?!?
- Ah, mas eles são estrangeiros, logo, devem fazer o REVALIDA pra provar que têm qualidade!
Se os médicos brasileiros não precisam do REVALIDA então não existem meios de provar quem é mais qualificado! E se a exigência é unicamente pelo fato de serem estrangeiros, então o problema é mais grave. Preconceito, xenofobia e outras coisas do gênero, na minha opinião, é caso pra polícia!
Por último, vejo muitos dizerem que não adiantam médicos sem estrutura, sem hospitais qualificados, enfim, sem a tecnologia! A estes eu pergunto o quê que era a medicina há 50 anos? Não existiam médicos? Eles não podiam fazer nada? Se não há estrutura nem médicos, ao menos agora, teremos médicos! Penso que um médico é melhor do que nenhum médico! Simples assim!
No mais, quero deixar claro que torço muito para que esse programa dê certo! Torço para que abram mais e mais Cursos de Medicina! Torço para que tenhamos em breve, tantos médicos que possamos, finalmente, ter saúde para todos! E que finde de uma vez por todas essa ganância por dinheiro, poder e status que tanto maltrata a todos nós!
É o que penso!
Só os médicos que gostam de dinheiro, né?
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