O pianista André Mehmari é um dos maiores fenômenos da música instrumental surgida no Brasil nos últimos tempos. Quem acompanha o gênero conhece certamente a sua técnica espantosa, sua fluência única e sua capacidade de transitar com sobra entre os estilos da música popular e da música de concerto. Seu recital recente na Sala São Paulo remetia, sem medo do paralelo, a uma versão brasileira do paradigma Keith Jarrett, o pianista que tem o instrumento como uma extensão total do corpo e que improvisa numa zona sem fronteiras entre as formas que o piano acumulou. Mehmari relata no Facebook uma experiência recentíssima e a seu modo chocante, que desafia a nossa capacidade de ler o estado atual das coisas.
Antes de passar a ela, uma observação a mais sobre a comparação entre Jarrett e Mehmari, marcando agora não a semelhança mas uma diferença estética, para não deixar a comparação de passagem num plano muito simplista. Jarrett é angustiado, problematiza o silêncio que o ronda, envereda pelo fragmento e pelo choque, entre o jazz, a música clássica e os impasses da arte moderna. Mehmari é de uma musicalidade sem dramas, de fundo romântico, que jorra nos moldes daquela que a lenda consagrou como sendo a de Villa-Lobos, que não conhece nem coloca limites à sua inesgotável capacidade de expressão.
Vamos aos fatos. André foi participar de um espetáculo para 600 crianças de escolas públicas, com idades entre 10 e 12 anos, num dos teatros municipais de Campinas, no bairro da Vila Industrial. Acho que o programa se chama “Ouvir para crescer”, e se iniciava com uma parte em que atores apresentavam de maneira divertida, caracterizados como palhaços, as características da linguagem musical. Até aí o roteiro pedagógico-cultural transcorria sem sustos. Em seguida entrava André, que apresentaria músicas de Ernesto Nazareth, fazendo as pontes, que ele é mestre em fazer, com outros repertórios. Ao começar uma explicação sobre a sua participação, e mesmo antes de tocar, começou a receber vaias e xingamentos pesados, intensivos, que se multiplicaram e continuaram ao longo de toda a apresentação.
Mehmari é uma pessoa sem pose, suas apresentações são informais e guiadas pela vontade sincera de contribuir. A rejeição não se aplicava a eventuais pompas ou a alguma ostentação de atitude. Imagino que ela se dá, primeiro, na passagem do tom divertido da primeira parte ao tom mais sério e concentrado que ele imprimia. Junto com este vêm certamente, misturados na reação cega da massa de xingamentos, o peso oficial da escola desacreditada, confundido com o estranhamento de classe social, que o pianista deve ter encarnado involuntariamente naquela situação ao mesmo tempo específica e sintomática.
Antes de qualquer outra consideração, é preciso dizer que a reação cega e coletiva ao outro, informe, não elaborada, dada de antemão e deixando sem ação os monitores do programa ironicamente intitulado “Ouvir para crescer”, com o agravante de que vinha de pré-púberes, é um sinal, entre outros, de pontos de ruptura no tecido civilizatório que passa pela escola. Notícias recentes, vindas de muitas partes, de violências no espaço escolar, dentro ou fora da sala de aula, indicam essa espécie de liberação do ataque físico ou verbal, a colegas ou a professores, como uma prática disseminada da qual a plateia referida pode ser vista como um corpo de aprendizes já em plena atividade.
Mais que isso, eles estão imitando procedimentos que estão se dando de muitas formas e em muitos lugares, não só nas chamadas classes C e D, como era o caso, mas nas A e B, na escola, nos debates, nas instituições, na rua. Gozar mais a derrota do time adversário do que a vitória do próprio time é um dos sintomas dessa síndrome. Quem quiser entender isso precisa escapar da lamentação moral de classe média sobre a falta de educação nas famílias. Não que ela não exista, e não seja um dos focos da questão, mas é que ela faz parte de uma rede de identidades que se constituem precariamente sobre a relação rivalitária de indivíduos e grupos cuja afirmação de existência depende da negação frontal do outro. É uma queda do laço simbólico que supõe a troca e a aceitação da própria fragilidade, das próprias insuficiências e das próprias contradições.
A cultura alta levada para jovens plateias pobres (no caso, Nazareth!), pode fazer o papel de ingênua, nesse contexto em que os muros e os fossos reais e imaginários prevalecem. Mas a questão, para mim, continua sendo a de ultrapassar os muros e os fossos, nas duas direções.
Prezados,
ResponderExcluirGostaria de tecer alguns breves comentários sobre o texto de Miguel Wisnik. Conheço e respeito seu trabalho, principalmente seu livro chamado "O som e o sentido", sempre citado nos trabalhos de relevância.
Porém, algumas questões relativas à Educação Musicais de nosso país são, em alguns trechos, mal argumentadas.
1- O "grande músico" nem sempre sabe como se comunicar com todos os públicos, especialmente o da escola. A formação do gosto já está adiantada pelos vários meios de comunicação de massa. Reiterar que isso é ruim é muito pouco, é superficial. Além do quê, qual foi a proposta pedagógica do projeto "Ouvir para Crescer"? Ouvir "música de piano" é ouvir para crescer?
2- Não é de se estranhar tanto assim a atitude descrita no texto pelos estudantes da escola. O sistema escolar normalmente oprime através de suas normas nem sempre lógicas e pertinentes. Quando o coletivo se reúne, especialmente em eventos públicos, percebe que tem poder, mesmo que para uma manifestação de protesto. Quem disse que a manifestação dirigia-se necessariamente à apresentação do pianista? Qual foi o objetivo de fomentar esse evento? E, novamente, qual a proposta pedagógica explicita? É a de mostrar música de "alta cultura"?
Convenhamos que "alta cultura" para um trabalho de Educação Musical é um pouco equivocado e elitista. Com isso não digo que devemos esconder ou negar nossas convicções ou gostos. Apenas acho que no âmbito geral, e principalmente no espaço escolar, NÃO DEVEMOS IMPOR NOSSO GOSTO AO OUTRO.
Música é encontro. Encontro com o outro. Nesse sentido, tento encaminhar a discussão do Prof. José Miguel Wisnik para um outro caminho: como podemos estabelecer espaços de encontros musicais na escola básica? Como compartilhar música no espaço escolar em lugar de impingir nosso gosto como "correto"?
Penso que o caminho é o da Educação Musical com bases pedagógicas e filosóficas calcadas na democracia do acesso à música, solidariedade e colaboração. Como não esta não é tarefa pouca, continuemos caminhando nesse processo de construção desses espaços de compartilha musical-humana.
Marcelo Mateus
Educador Musical.
Meu ilustre Professor Marcelo,
ExcluirÉ um imenso prazer tê-lo como leitor deste meu espaço tão maltratado! Sinto saudades de suas aulas sempre regadas de humanidade e conhecimento!
Grande abraço!!!
André Mehmari é um grande músico a quem eu admiro demais. Ernesto Nazareth dispensa comentários. Embora eu não seja educador, parece-me bastante válido oferecer a alunos de regiões mais carentes outras possibilidades de apreciação da arte, até mesmo para que eles possam ampliar seus horizontes. Não no sentido de terem contato com algo "melhor", mas no sentido de serem mais ecléticos mesmo. A recíproca é verdadeira.
ResponderExcluirAcredito que a abordagem utilizada na escola foi de uma ingenuidade atroz. Não é de se surpreender a reação dos alunos. Talvez tivesse mais êxito se André Mehmari preparasse uma apresentação com um grupo de rap, misturando as duas linguagens. Inicialmente poderia haver algum estranhamento dos alunos mas depois - as pessoas são inteligentes e sensíveis mesmo em condições desfavoráveis - eles captariam a ideia e poderiam abrir seus horizontes. Tipo assim: "pô, mas piano é legal!". E eles mesmo poderiam construir suas pontes ao longo do tempo, com orientação dos seus mestres. Pode ser que nunca chegassem a Ernesto Nazareth, porque também existe a variável do "gosto". Mas já teriam crescido, a proposta inicial do projeto.