Por Prof. Marcos Melo
No Brasil, é comum ouvir bizarrices como “O Prof. Fulano reclama de
dar aulas demais, mas o cargo dele é de professor, né?”. Ou seja, há
muita confusão sobre quais seriam as reais atribuições de um professor
universitário. Como esse é o cargo mais importante na carreira acadêmica, vale a pena dedicar um post inteiro a esclarecer essa questão.
É claro que, na prática, o que cada professor faz no dia a dia varia muito entre universidades. Na verdade, há uma enorme variação mesmo entre professores de uma mesma universidade. As atribuições também vão mudando, conforme se progride verticalmente na carreira: substituto > assistente > adjunto > associado > titular. Aqui não vou tocar em problemas como concursos-gincana, acomodação, estabilidade fácil, isonomia salarial, salário defasado em relação à inflação etc., que merecem outros posts. Vou focar no sentido maior do cargo.
Em outros idiomas e culturas, a diferença entre um professor
universitário e outros tipos de professor fica clara já no vocabulário.
Por exemplo, no inglês, o termo professor se aplica apenas ao professor universitário, enquanto teacher é o professor de escola e lecturer
é o docente universitário, geralmente com doutorado, mas sem título de
professor. Sim, nos EUA, Inglaterra e outros países, professor, mais do
que um cargo, é um título. No alemão também se diferencia o professor
universitário através do termo Professor, enquanto quem dá aulas em escolas é um Lehrer e quem dá aulas na universidade sem ter o título de professor é um Dozent.
Não é uma questão de qual tipo de professor é melhor do que o outro,
blablabla. Cada professor tem o seu papel no sistema educacional e todos
são importantes. É apenas uma questão de diferenciar as carreiras e
títulos, para se definir claramente o que se espera de cada professor.
Então o que diferenciaria o professor universitário dos outros?
Simples: esse cargo foi inventado para ser ocupado por profissionais que
associam pesquisa e ensino. Sim, essas duas atividades são
indissociáveis no conceito original de professor universitário. Mas, por
que, Marco? Porque espera-se que um professor universitário esteja
sempre na vanguarda da sua área. Espera-se que ele atue na formação de
profissionais de nível superior, ensinando-lhes não apenas o
conhecimento já sedimentado, mas também as novidades e macetes.
Para se formar em uma profissão de nível superior, o aluno tem que
ser apresentado tanto aos fundamentos quanto à vanguarda. Acima de tudo,
espera-se que um professor universitário produza ele mesmo algumas
novidades. Sim, um professor universitário tem a obrigação não apenas de
transmitir, mas também de produzir conhecimento. E a transmissão de
conhecimento se dá principalmente em sala de aula, passando informações
consolidadas para os aspiras, e também divulgando descobertas em revistas técnicas indexadas e revisadas por pares.
Então um professor universitário tem que fazer pesquisa também? Sim,
claro! Ninguém se atualiza tanto em uma área, quanto alguém que precisa
disso para fazer as próprias pesquisas, porque ama a ciência.
And the plot thickens… Pelas leis brasileiras federais e estaduais, a carreia de professor universitário envolve, em geral, cinco pilares:
- Ensino: coordenação e participação em disciplinas de graduação e pós-graduação, presenciais ou à distância.
- Pesquisa: investigação científica ou tecnológica para produção de conhecimento. Na verdade, a área da pesquisa envolve mais um monte de coisas além da investigação e publicação, como revisão de artigos, editoração de revistas científicas, organização de congressos, administração de sociedades científicas, consultoria para agências de fomento, assessoria à imprensa, assessoria política dentro da área em que é perito e muito mais.
- Orientação: formação de novos cientistas através de estágios e projetos orientados de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado.
- Extensão: assessoria e divulgação de conhecimento científico e técnico para o público externo à universidade através de consultoria, palestras, cursos, exposições, museus etc.
- Administração: cargos de chefia em geral, cargos em órgão representativos da universidade (câmaras, conselhos, congregações), gerenciamento de projetos, captação de verbas externas, contabilidade, direção de laboratórios, etc.
Dependendo da universidade e do seu regimento interno, espera-se que o
professor universitário envolva-se com no mínimo dois ou três desses
pilares. Os melhores professores acabam se envolvendo com todos. O único
pilar obrigatório é o ensino. Só fica desobrigado parcial ou totalmente
de dar aulas quem ocupa altos cargos administrativos, como chefe de
departamento, diretor de instituto, pró-reitor ou reitor. Significa que,
na prática, nem todo professor universitário é obrigado a fazer
pesquisa.
Vamos destrinchar um exemplo mais concreto: as universidades federais
brasileiras. De acordo com a lei que rege essas instituições,
o professor universitário “padrão” (sem cargo de chefia ou outras
condicionantes) é obrigado a dar de 8 a 12 créditos por semestre. Cada
crédito representa mais ou menos 15 h em sala de aula. Ou seja, o
sujeito é obrigado a passar dentro de sala entre 120 e 180 h por
semestre. Um professor dedicado, que de fato gasta tempo e energia com
as aulas, precisa de no mínimo 2 h de preparação (slides, leituras,
material biológico para aulas práticas, preparação de computadores etc.)
para cada 1 h em sala. Vamos considerar que uma disciplina obrigatória
de graduação tem 4 créditos (60 h) e costuma ser organizada de forma a
ocupar 4 h em sala por semana. Logo, das 40 h de trabalho semanais
determinadas por lei, o professor acaba passando pelo menos
12 h envolvido com a disciplina. Isso, fora as horas gastas com
atendimento de alunos e correção de trabalhos. Assim, a conta pode
facilmente chegar a 16 h por semana ocupadas com cada disciplina e piora
na época das provas e entrega de trabalhos, se o professor não contar
com ajudantes. Supondo uma turma com cerca de 60 alunos, imaginem a
seriedade da ralação. E, já que o mínimo são 8 créditos, o que nós,
professores, enfrentamos é isso vezes dois, pelo menos.
Para se ocupar com 2 disciplinas de 4 créditos por semestre,
totalizando 8 créditos, e realmente ministrá-las com qualidade, o
professor universitário não poderia se envolver com mais nada! A quem estamos enganando?
A única forma de aliviar essa carga é através da ajuda de
pós-graduandos que atuam como tutores e graduandos que atuam como
monitores. Mas nem todo professor ou toda disciplina contam com o apoio
de auxiliares. Os tutores remunerados conhecidos internacionalmente como
“TAs” (teaching assistants), comuns nos EUA, Alemanha, França e
UK, chegaram a ter uma versão brasileira temporária durante o Reuni. Só
que o programa foi planejado para durar apenas cinco anos. Só para
variar, nada é pensado a longo prazo neste país, tudo é paliativo, tudo
é jeitinho. Como alguém pode se dedicar de verdade à pesquisa de ponta
tendo sobre os ombros o peso de uma carga didática massacrante como
essa? Como alguém pode fazer extensão e atender de outras formas o mundo
real fora da Academia, sendo obrigado a dar aulas igual a um burro de
carga? Na verdade, como seria possível conciliar qualquer um dos outros
quatro pilares da carreira com um ensino de qualidade em grande
quantidade?
O Brasil tem um verdadeiro fetiche pela sala de aula! Em
universidades de ponta, a carga semestral obrigatória do professor não
ultrapassa 4 créditos. Na prática, os professores e alunos passam muito
menos tempo em sala, justamente porque se dá mais valor à independência
dos aspiras. O bom aluno do ensino superior gasta a maior parte do seu
tempo estudando por conta própria, sozinho ou em grupo, através de tarefas orientadas ou leitura espontânea. O momento em sala com o professor na aula teórica (lecture ou Vorlesung) serve para apresentar ou consolidar o conteúdo principal, receber orientações, tirar dúvidas e passar tarefas.
No Brasil, castramos a individualidade, a criatividade, a autonomia, a
iniciativa e o livre pensamento, porque insistimos em adestrar
os alunos em cativeiro. Ok, estou divagando. Voltando ao ponto de vista
do professor, dá para entender porque nunca chegaremos ao mesmo nível de qualidade em ensino e pesquisa do primeiro mundo? Ficou claro porque estamos fadados a enxugar gelo e ficar sempre dois passos atrás dos nossos colegas mais afortunados?
Por favor, nunca mais diga que um professor universitário brasileiro
não pode reclamar de dar aulas demais, porque “tem cargo de professor”.
Isso é tão estúpido quanto dizer que um professor universitário que tem
bolsa de produtividade está desrespeitando a dedicação exclusiva, porque
é também “pesquisador do CNPq”.
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